sábado, 20 de setembro de 2014

Galileu, Descartes e a elaboração do princípio da inércia

Adaptado da Revista Brasileira de Física.

  


As leis do movimento perecem naturais e até triviais hoje em dia. Mas por trás desses conceitos simples, há uma longa história de mudança de pensamento e de quebra de paradigmas. E essa história foi conduzida ao longo de centenas de anos, por mentes brilhantes, que foram capazes de abandonar o que seus sentidos diziam para enxergar o mundo à luz da razão. Galileu é um desses nomes, e um do principais conceitos associados a ele é o princípio da inércia. Mas dificilmente Galileu teria desenvolvido esse conceito, não fosse a contribuição e o pensamento de outras grandes figuras da humanidade.

A Física Aristotélica e a Crítica Nominalista

O Universo aristotélico era constituído de uma esfera cujo centro era a Terra e na qual as estrelas se mantinham. A matéria era dividida em supralunar(imutável) e sublunar(mutável), constituída de terra, água, ar e fogo. Esses quatro elementos possuíam uma ordem decrescente de importância ou peso. Assim, a terra, por ser mais pesada, tendia a ocupar o centro do universo.

O movimento aristotélico era dividido em  natural e anti-natural. O movimento natural é entendido como causa de si mesmo. Assim, um objeto qualquer lançado verticalmente, tendia a retornar, por ser constituído de terra.

O movimento anti-natural é aquele causado por uma força externa ao objeto. Porém, na ausência dessa força, o objeto retornaria ao seu movimento natural. Aristóteles, a principio, não sabia explicar a continuidade do movimento, e atribuiu a isso à força exercida pelo ar.

Esse era o ponto fraco da física de Aristóteles e foi duramente criticado no fim da Idade Média. Guilherme de Ockham, monge franciscano, defendia que a partir do momento que o lançador perde o contato com o objeto, deixa de ser a causa do seu movimento. Com relação a hipótese de Aristóteles de que o ar seria responsável pela continuidade do movimento, Guilherme dizia que isso seria impossível, bastando observar o choque de objetos em direções opostas. Propôs então, que um corpo em movimento se move por simples continuidade de movimento.

A filosofia de Guilherme de Ockham serviu de base para que Jean Buridan, mais tarde, na Universidade de Paris, formulasse a ideia de que, no ato do lançamento, o lançador imprime no objeto lançado algo que ele chamou de "virtude", e que seria uma tendência a continuar o movimento inicial. Essa tendência adquirida pelo objeto, denominada "impetus" seria responsável pela continuidade do seu movimento, e que a gravidade e a resistência do ar destruiriam esse "impetus".




A hipótese heliocêntrica de Copérnico e o conflito com a física de Aristóteles

Ao propor um sistema heliocêntrico, Copérnico atingiu o cerne da física aristotélica. O movimento, que era explicado em grande parte, pela tendência dos objetos terrestres a ocuparem o centro do universo não fazia mais sentido. Os aristotélicos argumentavam que uma Terra em movimento, produziria efeitos desastrosos e inexplicáveis, como corpos arremessados no espaço. Copérnico argumentou então, que o movimento natural da Terra era girar, se apropriando da definição aristotélica, assim como os objetos em sua vizinhança, pois possuíam a mesma essência do planeta. Copérnico, portanto forneceu uma explicão metafísica ao sistema terrestre.




A introdução do conceito de sistema mecânico com Giordano Bruno


Giordano Bruno comparrtilhava da visão heliocêntrica de Copêrnico, porém explicava os questionamentos aristotélicos, não por uma afinidade dos corpos terrestres, mas sim por causas puramente mecânicas. Para Bruno, o deslocamento de um corpo dependia do sistema ao qual este está inserido e também no "impetus".

Galileu

Galileu primeiramente adotou a idéia de que os movimentos de um corpo não são perceptíveis por qualquer outro corpo que o compartilhe. E depois incorporou o conceito da relatividade do movimento

Analisando o problema do lançamento vertical de um corpo, Galileu difere de Giordano Bruno por um elemento decisivo. Os corpos em queda mantinham o movimento não porque recebiam um impetus, mas porque esse movimento persistia inerciavelmente.

Em seu livro Dialogos , Galileu traz um argumento muito forte acerca da inércia, ao relatar o movimento de uma esfera perfeitamente lisa e esférica sobre um plano inclinado também perfeitamente liso. Utilizando esse exemplo, Galileu demonstrou que a tendência de um corpo, sem aclives ou declives, seja em repouso ou em movimento é de permanecer em seu estado inicial.

Porém, aparentemente, Galileu não foi capaz de conceber abstratamente a eliminação da gravidade, porque para ele esta ainda constituía uma tendência do corpo e não algo que atuasse sobre ele a partir de fora.

Descartes


Descartes situou o princípio da inercia, tal como o concebemos hoje. Para Descartes, a matéria possuía apenas um atributo, a extensão. A matéria era desprovida de atributos qualitativos e ficava, portanto, definitivamente eliminada a ideia de tendencias inerente aos corpos, capazes de determinar o curso dos fenômenos. No universo cartesiano, os fenômenos materiais eram ditados exclusivamente por causas mecânicas: as colisões entre os corpos. Nas palavras de Koyré, a física cartesiana é a física das colisões, enquanto a física de Galileu é a física da gravidade e a de Newton será a da força.

Decartes também reformula o conceito de movimento:

"Cada coisa permanece no seu estado, se nada o alterar; assim, aquilo que uma vez foi posto em movimento continuará sempre a mover-se."

Assim o o movimento-estado de Descartes não  possui nada em comum com o movimento-processo de Aristóteles e da Escolástica. No mundo-extensão de Descartes, o movimento se mantém, evidentemente, por ele mesmo, e prossegue indefinidamente no infinito do espaço plenamente geometrizado que a filosofia cartesiana abriu diante dele.

Aquilo que para o sistema aristotélico era absurdo, a continuidade indefinida do movimento, desprovida de qualquer fim pré-determinado, se torna uma realidade no pensamento cartesiano. O desenvolvimento da física nascente exigiu como seu correlato a completa superação da filosofia aristotélica.


Conclusão



A formação da ideia de inércia exigiu uma completa reformulação do pensamento humano, com o abandono da visão de mundo aristotélica, caracterizada exatamente por sua integração a um sistema de pensamento extremamente abrangente e articulado. A revolução astronômica, desencadeada por Copérnico, se propagou de maneira irresistível para os demais ramos do conhecimento científico, promovendo o desmonte da ciência aristotélica.




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